4 de novembro de 2015

A melhor hora da Praia


Bonito,

Bonito foi nos conhecermos. Eu escrevendo, contemplando o mar. Você, do bar, contemplando a mim e ao mar. “Tienes una sonrisa muy hermosa”. Sorri. “Salgo a las doce, ¿te gustaría tomar una cerveza?”. “Sí”. 
Entre conversas sobre la música y la escritura, cervezas y sonrisas “me dijo que dormía temprano pues no llevaba una vida de turista”. Pensei nisso durante meu último dia na ilha, um dia de turista. Como ya lo sabe, viajé sola. Pero en muchos momentos de mis trilhas no permanecí sola. Este fue el único día que logré hacer eso. A melhor hora da praia.

Desperté temprano, antes del desayuno y me puse a escribir. El hostel Sitio Green, en el que estuve el último día, es fantástico. Una finca en el medio de la floresta. 
Un sitio tranquilo y a mí me parece que te gustaría trabajar allí. Tendrías incluso tiempo para entrenar el sax. Después de muchos cigarrillos e inspiraciones, desayuné tranquilamente aprovechando el lugar y los sabores de las diversas mermeladas. 

Después salí, destino Praia Preta.
Já tinha percorrido por ali no dia anterior, mas quis explorar melhor o lugar, desta vez sozinha. Tirando fotos e conclusiones. Durante o trajeto, vi alguns papeis e embalagens deixadas pelo chão. Comecei a recolhê-los e quando me dei conta já estava com a sacola plástica, também deixada no chão, llena de basura.
Lazareto - Ilha Grande/RJ
Esse passeio teve um ar de magia e traquinagem. Segui pela praia, mas vi entre as pedras umas trilhas mais escondidas. Me meti a explorá-las e encontrei vários resquícios das ruínas do Lazareto. Muralhas e escaleras de pedras cobertas pela mata. Fiquei maravilhada. Deixei meu corpo ser invadido pela atmosfera de aventura. Ao tentar me equilibrar numa pedra para tirar uma foto, escorreguei e cai. Ralei meu braço e me sujei de terra. Ri alto. 
É interessante lidar com o medo e o desejo. E me recordei de um poema que seu homônimo Alejandro Zambra, o autor chileno, escreveu no livro Formas de voltar para casa, àquele que você me via ler:






É melhor não sair em nenhum livro
As frases que não nos queiram abrigar
Uma vida sem música e sem letra
E um céu sem essas nuvens que agora
Você não sabe se estão indo ou vindo
Essas nuvens quando mudam tantas vezes
De forma que ainda parecemos estar
Morando no lugar que abandonamos
Quando ainda não sabíamos os nomes das árvores
Quando não sabíamos os nomes dos pássaros
Quando o medo era o medo e não existia
O amor pelo medo
Nem o medo pelo medo
E a dor era um livro interminável
Que um dia folheamos só para ver
Se no final apareciam nossos nomes

Todo el viaje fue muy simbólico, como te lo dije. Y en pocos días me ayudaste a aclarar muchos pensamientos y a ver otras formas de vivir. "¿Qué hiciste hoy?". Me encantó cuando te enseñé la piel de culebra que encontré en la trilha y tú dijiste que se asemejaba al mapa de la América y también a mí, cambiando de piel.
Conversei com muitas pessoas durante a viagem e quando lhes perguntava alguma ideia de passeio para o dia, elas me indicavam o lugar onde tinham a melhor vista da ilha. Foram diversas melhores vistas. Hoje, no meu último dia aqui, encontrei o meu lugar. Quase ao fim da Praia Preta, encontrei uma trilha que me levou a algumas pedras gordas e altas, com um musgo verde vivo. Sentei numa delas e contemplei a vista por um longo tempo. Vi muitas conchas grudadas nas pedras. Y después de casi dos años, encontré el momento ideal para fumar mi proprio porro. Hecho por mí misma. Temblaba. Fue una mescla de sensaciones, libertad y  seguridad y miedo… Uma borboleta amarela cruza pela minha paisagem... Tudo significa.


Praia Preta - Ilha Grande/RJ
Sai dessas pedras pelo mar. Encontrei outro lugar ideal embaixo de umas árvores baixas, como arbustos, sobre um rochedo das ruínas do Lazareto. Deixei encostados nela a sacola de lixo, a mochila, a roupa e os chinelos. Ao redor, havia algumas pessoas na praia e umas poucas ruínas. Um velho cais implodido, provavelmente. Joguei meu corpo e desejos no mar.


Entrei bem devagar para contemplar cada passo, percebidos claramente diante da limpidez da água. Isso foi o que mais me deixou abestalhada na ilha. A limpidez das águas dos mares que a circundam. Sim, mares. Pois cada praia é particular. Mudam os tons de cores e sabores de sal. Dá para ver os peixes, as conchas e muito do bioma marinho, se contemplá-los com cuidado e abrir os olhos para outros universos. Muitas pessoas divagam em pensar se há seres extraterrestres. – Não sei, provavelmente. – Mas não se dão conta de todo o universo que há no nosso próprio habitat. Me diverti observando as conchinhas.
Mergulhei e pude ver também o reflexo de minhas mãos na água. Como se olhasse para um espelho, de baixo para cima. Estava plena. Sensação incrível. Há uns 200 metros havia pedra no meio das águas do mar – calculo. Já havia observado algumas pessoas nadarem até lá e quando não tinha mais ninguém nadei até ela. Lapidada pelo mar na parte superior, mas bastante áspera nas laterais. Essa inclusive foi uma das queixas que ouvi dos companheiros de trilhas “as pedras são bem ásperas por aqui, tenha cuidado”. Nesse momento, agradeci. Algumas asperezas são necessárias. As da natureza, somente. Quando cheguei na pedra, excitada de adrenalina e de marihuana, gritei naturalmente: Terra à vista! Gargalhei de mim. É bom rir de si, por isso vivo sorrindo. Das situações e acasos que vivo. Para me livrar de certas asperezas não naturais.
Deitei na pedra e deixei as ondas me lapidarem também. “Llegué”. Gozei. Já fazia uns dias que eu não alongava as costas – um dos maus de se dormir em beliches. Já deitada na pedra, levantei as pernas para cima, forcei a lombar e levei as pernas e os pés para trás da cabeça. Um tesão sentir meu corpo todo se esticando. Trouxe as pernas de volta, mantive-as para cima, num ângulo mais ou menos de 90 graus, e estiquei o máximo que consegui. Depois desci as pernas, deitei novamente e levei meu tronco até o joelho, abraçando os pés. Deitei novamente, as ondas me fizeram escorregar um pouco, e senti que era hora de voltar à areia.
Nesse meio tempo, com infinitas coisas para brisar, você me veio à cabeça, Alejandro U. “Soy argentino pero el apellido es vasco”.
Pensei no trajeto que você disse fazer todos os dias a nado. Energizante! Não pude deixar de pensar também em nossa breve despedida. Estava difícil deixar a Ilha e arranjei desculpas para permanecer mais tempo nela. A primeira foi o ônibus, que deixei, propositalmente, para comprar de última hora e quando vi – quando vimos –, sexta à noite, não tinha mais vaga num horário depois das 18h. Fiquei mais um dia e foi providencial. Esse dia foi hoje. O meu dia. A melhor hora da praia.
A outra desculpa seria passar o dia contigo, porque “los martes son meus dias de folga”. Nesse tempo em que fiquei na pedra, algumas coisas ficaram mais claras. Pensar em escrevê-las deixou tudo mais límpido, como o mar. Sou uma mulher das palavras escritas. Quando propus a você que passássemos esse dia juntos, queria experienciar o dia com você. Como você vive seus dias na ilha. Como acabei também vivenciando a rotina de outras pessoas da ilha. “No quiero envolverme con nadie”, me disse. “Yo tampoco”, respondi. No entanto, já estávamos envolvidos. No quisiste. Talvez tenha sentido medo, miedo. Ya te había dicho que tampoco quería envolverme con alguien. Não tenho como. Você também não. Estás para la música como estoy para la escritura. Estamos para la vida. Solo me gustaría que hubiera tenido confianza en mí. ¿Comprendes? Pero no dice que no me enamoraría de ti. Me suena diferente. Pienso que la vida es para ser vivida con pasión. Lo siento, pero me enamoro de las personas que piensan. Además de eso, de tu miedo solo concluyo que yo soy una persona apaixonante. Tu también lo es. Fomos. Fuimos.
Queria nadar da praia de Abraão à Julia, de Julia à Crena – e poder ver à luz do dia a praia onde transamos à luz do luar –, e de Crena à Abraãozinho. Sentir o tesão de nadar com você e te ouvir algumas horas mais. Depois, voltaríamos pela trilha, molhados e suados. Você cozinharia para nós seu prato preferido e enquanto estudava música, eu começaria a ler Siddhartha, de Hermann Hesse, e escreveria poemas. Por la tarde me iría a Sitio Green, arreglar mis cosas para partir. Sin embargo, nos quedaron abrazos, besos y cansancio. “Boa vida!”. “¡Buena vida!”.  
De volta à areia, traguei deliciosamente um cigarro. Senti vergonha, depois de tudo que acabara de fazer. Nadar, alongar... Ainda não tenho vontade de parar. Talvez mude para o palheiro. Talvez. Uma hora isso acontecerá naturalmente, como a vida deve ser. Ou não? Mas me pego a pensar que fumando só estrago – conscientemente – a mim. E a minha frente vejo a sacola cheia dos lixos que encontrei pelo caminho. As recomendações de saúde giram em torno do discurso da hipocrisia. Por isso recolho lixos e fumo cigarros.
Fechei o cuaderno de ideas – o mesmo que você escreveu o nome de Aníbal Augusto Sardinha, Javier Malosetti & Negro Rada – e me joguei no mar para um mergulho de despedida. Energizante. E segui meu rumo, hoje com um destino mais certo e cronometrado.
Me troquei na trilha, tirei ainda uma porção de fotos e fui comprar regalos para mi família. A loja Artesanato é incrível. Uma casa de fachada amarela com janelas azuis, bem próxima ao cais por onde sai a barca. Além de esculturas, cangas e lenços muito bonitos, ela tem logo na entrada uma prateleira com instrumentos musicais. Segundo a vendedora, a maioria dos artigos da loja são importados da Indonésia. Os instrumentos também são. Comprei dois, não resisti. Mais uma das tantas lembranças da ilha. Uma flauta de bambu e um tambor de mola grande, o mais manêro, pues ele imita o som do trovão, truenos, se você o coloca mais longe do ouvido, e das ondas do mar, olas, se o coloca encostado. Ele é feito de um papel bem grosso e tem formato cilíndrico. Numa ponta é fechado com plástico e do meio desse plástico sai uma mola larga, de uns 30 cm. Curiosamente, gostei do primeiro que peguei pelo som e por ter nas pinturas tons de verde, minha cor preferida. Depois, observando-o de novo, me dei conta de que tem um lagarto desenhado de estampa. Tenho simpatizado com as metáforas dos répteis, cobras e lagartos.
Depois que almocei, segui em direção ao Sítio, o hostel que passei esse último dia. Lugar fantástico. Posso dar mais detalhes numa outra correspondência, porque algo mais fantástico aconteceu em seguida. Caminhava na rua Profa. Alice Kuri da Silva, a rua da igreja, e ouvi um barulho de serra na primeira rua à direita, numa das paralelas da Rua da Praia. O som vinha de uma marcenaria. A marcenaria do Maurício. Ele é badjeco – nome que se dá aos nativos de Ilha Grande ou que moram nela há mais de 9 anos. Parei em frente à loja e o observei trabalhar. Muito simpático, disse para eu olhar à vontade. Agradeci sorrindo. Reparei que bem na frente da loja, à esquerda, havia uma mesa cheia de livros. Ao lado dela, uma caixa também cheia. Na conversa, Mauricio me disse que num sonho ouviu alguém dizer a ele que tirasse os livros da estante e os pusesse à mostra, na cara das pessoas. E assim ele iniciou seu projeto. Ele propõe que cada pessoa pegue o livro e passe-o para frente, para outro leitor, e deixe um de seus livros na mesa. Essa é a segunda vez que expunha os livros, a primeira vez foi em frente à igreja.


Me aproximei da mesa e de cara vi O fio das missangas, de Mia Couto, autor moçambicano. Tive uma vaga lembrança de dois amigos comentarem sobre Couto na mesa do bar, em São Paulo. Fiquei com ele e fiz um acordo com Maurício: “Vou levar esse livro, mas me passe seu endereço – su dirección – que te enviarei o meu” – pensando no livro que vou escrever sobre essa viagem, como comentei com você. Endereços trocados, nos despedimos. “Quem sabe não te trago o livro e te entrego em mãos Maurício...”. Ele sorriu e disse que aguardará.
Ao olhar o livro, vi que a página estava marcada pela orelha no conto “O rio das Quatro Luzes” e logo na primeira linha, uma adaptação de um provérbio moçambicano dizia “O coração é como uma árvore – onde quiser volta a nascer” – El corazón es como un árbol – donde quieras vuelve a nacer.
Não sabemos por onde os acasos nos levarão. Estou descamando e uma nova pele se cria. Não te esperarei. Pero sería lindo (re)conocerte en otro lugar y vivir los días contigo, escribiendo y escuchando las canciones de uno que un día fue el único saxofonista de la isla. Viviendo nuestra madurez.

¡Buena vida!

Com amor,


Bonita.