13 de janeiro de 2016

Tiro, porrada e bomba. Em dois atos.

Primeiro ato.

[Sugestão de trilha sonora para acompanhar a leitura: Causa Sui - Summer Sessions Vol. 1-3]

– E ai, vai à manifestação?, me perguntaram no banheiro do trabalho.
– Nem vou. Você vai?
– Vou sim. R$3,80 né, um bom motivo pra se manifestar...
Sai do trabalho umas 18h30. Entre trocar de roupa, colocar o capacete, as luvas e a trilha sonora da volta pra casa, pensei que seria interessante desviar o percurso habitual da ciclovia e passar pela manifestação e observá-la.
De boinha, subi a Rua da Consolação. Não pretendia participar da manifestação – e “participar” é o verbo mais usado na atualidade, quando se confirma a presença num evento, muitas vezes “mais curtido” do que representado. 
Ao meu lado, também numa bicicleta, subiu um cara. A princípio, acelerei. Sou uma mulher. Nem frágil, nem menos desconfiada. Desde o início da rua tinham policiais. – Qualquer coisa eles me ajudam, certo? Não. Qualquer coisa eu grito – pensei.
Começamos a trocar ideias. Ou melhor, ele começou a me acompanhar e falar comigo.
– O Brasil está se afundando..., dizia. 
Senti que a Consolação nunca foi tão curta, pois subíamos no meio da rua...
 – Vamos aproveitar enquanto hoje a rua é nossa! – eu disse.
... e a prosa tomou um rumo interessante. Ele concordou, mas nos mantínhamos sempre olhando pra trás. É o hábito de ciclistas, de pedestres e, mais, de mulheres que costumam andar sozinhas pelas ruas.
No percurso falamos sobre o Brasil, os brasileiros, o aumento das passagens, as férias...
Edson – o cara se denominou assim –, com seus quarenta e tantos anos, sinalizados pelas rugas e sinais de expressão de quem trabalha há muito tempo – poderia até ter menos idade – e eu, com meus vinte e seis anos e filha de uma típica classe média, bem criada, sinalizados pelos bons dentes.
– E por que o Brasil está se afundando? – digo discordando. – As pessoas nunca puderam adquirir mais bens, ser mais consumistas, como hoje. Porque é isso que a economia avalia...
– Não entendi, desculpe. Você pode me explicar?
– Claro, quero dizer que hoje em dia muitas pessoas podem comprar coisas que há alguns anos elas não podiam. E quando falamos que o país está em crise ou não, um dos motivos de se dizer isso é porque as pessoas têm consumido, comprado, mais ou menos...
– É que nós, estamos falando de nós, brasileiros. Nós afundamos o Brasil e para que nós fazamos um país melhor não precisamos consumir se o país está em recessão. Só tou de bicicleta porque tou de férias. Semana passada tava na Praia Grande.
– Que delícia, heim...
– E fui de ônibus. E levei essa aqui – disse, batendo carinhosamente na magrela.
– E pra quê carro, né?...
E conversa vai e vem, chegamos ao cruzamento central do Brasil, a Rua da Consolação com a Avenida Paulista... – é o que pensam muitos dos paulistanos – Centro que um dia, para Caetano, foi a Avenida Ipiranga e a Avenida São João. E ainda mais auspicioso que Caetano foi Juscelino Kubitschek criando uma capital no cu do mundo. Digo cu por ser o centro do corpo humano – basta ficar um dia sem cagar que ficamos deveras enfezados –. Além disso, fazer merda é natural do Homem e quem disse isso, de uma forma ou de outra, não fui eu, e sim Kundera, que cito seguindo rigorosamente as normas (sem aspas, com mais de três linhas)

A merda é um problema teológico mais penoso que o mal. Deus dá liberdade ao homem e podemos admitir que ele não seja o responsável pelos crimes da humanidade. Mas a responsabilidade pela merda cabe inteiramente àquele que criou o homem, somente a ele. [...] Se, ainda recentemente, a palavra merda era substituída nos livros por reticências, isso não se devia a razões morais. Afinal de contas, não se pode considerar que a merda seja imoral! A objeção à merda é de ordem metafísica. Defecar é dar uma prova cotidiana do caráter inaceitável  (e, nesse caso, não precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos criou de maneira inadmissível. Segue-se que o “acordo categórico com o ser” tem pode ideal um mundo no qual a merda é negada e no qual cada um de nós se comporta como se ela não existisse. (KUNDERA, 1985, 247-250).

Despeço-me de Edson.
– Você tem um telefone em que a gente possamos se falar? – E veja aí a merda...
– Já valeu nossa conversa de hoje, né Edson...
– Me desculpe, obrigada pela conversa. Agora quero ver como é que vou fazer pra cruzar, pra seguir meu caminho...
– Tchau tchau.
Edson não sabe, mas pensei o mesmo que ele. – Como é que vou fazer pra cruzar pro meu caminho? – . Na dúvida, parei pra observar a paisagem, um mundaréu de gente com cartazes, máscaras de gás e voz. Criei o seguinte enredo na minha cabeça. Os manifestantes driblariam o policiamento militar e a tropa de choque. Ao invés de descer a Rua da Consolação, o que já era esperado, desceriam a Avenida Rebouças, uma das vias arteriais da cidade, representada majoritariamente pela presença dos automóveis, além de ser a via que homenageia o André. André? É o André Rebouças, o André engenheiro, o André representante da classe negra em ascensão durante o Segundo Reinado, o André abolicionista. São tantos e é o mesmo. Atualmente esquecido, pobre – de nós! . E lamento a história ser vista por um só lado. E também lamento que caia no esquecimento das cotidianidades. O que somos nós se não as Histórias e histórias e estórias... Como essa que lhes conto.

André Rebouças (1838-1898).

Eu, tão inocente, pura e besta, me propus a estacionar a bicicleta numa esquina infeliz, acender um palheiro para pensar, assim como quem espera um ônibus sem pressa nem atropelo, até conseguir solucionar meu caso de vida ou morte desses minutos. – Como atravessar a rua?.
Já me era sabido que esse cruzamento... – melhor, encruzilhada – Já me era sabido que essa encruzilhada estaria saturada de gente e expectativas. Eu poderia ter seguido outro caminho, a ciclovia central, e a essa hora – a que escrevo – já estaria em casa. Mas não. Nem sempre escolhemos – escolho – o caminho mais fácil – ou menos interessante. Escolhi subir a Rua da Consolação, escolhi seguir todo o trajeto na companhia de Edson, escolhi observar os manifestantes. Escolhi estar aqui, agora. Num bar de uma praça central de São Paulo, entre a Avenida São Luis, a Rua Dr. Bráulio Gomes, a Consolação, a mesa e um copo americano de cerveja. E a história será narrada até aqui. Prometo! Tentarei conservar uma emoção a essa narrativa. A emoção que cabe a um dia vivido e sentido a plenos pulmões, olfato, lágrimas e coração. Um dia vivido por mim. Ser eu pode se tornar bastante interessante.
Imagino ter dado uns dois tragos e, como esse cigarro apaga quase mais rápido do que a velocidade da luz – pensa a fumante –, estava ali mais para conservar a cena na história da memória. Permaneci ali até toda minha inocência se transformar em adrenalina. Ouvi tiros e projéteis – de borracha – caíram na minha frente. E fumaça, muita. E gente, muita gente correndo. Corri. Estava com a bicicleta e corri. Corri até não ser atropelada pelos pedestres. E parei. Guardei o cigarro, sem ter certeza de que estava completamente apagado – e torcendo para que estivesse –, e o isqueiro e a angústia. Joguei tudo dentro da mochila e pedalei, muito rápido. E voei. E como no percurso da ida, os olhos sempre se voltavam pra trás. 
Nisso, o gás lacrimogêneo já tinha impregnado em meus poros. Passado pelas unhas do pé, pelo cu, até às últimas pontas do fio do cabelo. Pedalava o mais rápido que podia entre pedestres, chorava, lacrimejava, limpava os olhos que ardiam, engasgava e cuspia. Cuspi muito, tanto quanto corria. Tive que parar. Parei. E um enviado de Deus veio até mim – Aleluia! – e com um recipiente azul na mão, disse: 
– Bocheche! E vá ser gauche na vida... – Ou seria enviado de Drummond?
Não sou gauche, nem droite, nem rien. Fujo das bivalências. Mas ao mesmo tempo sou delas. Tout. E sendo, penso. Ou vice versa. Versa vice. A questão é que não há espaço na vida para ser gauche desde a institucionalização do capitalismo no século XIX. Não há espaço para o gauche ser na vida. E sem tempo pra pensar, tomei o líquido branco oferecido por um estranho em meio ao desertar da manifestação. Como me instruiu o enviado, bochechei e cuspi e revigorei e pedalei. A questão é: quando estamos entre cúmplices, nos acreditamos. Pois bem acreditem, advertem o enviado e a desertada: usar leite de magnésia em confrontos com a polícia faz bem à saúde. E nunca se esqueçam – principalmente você mulher – mantenha sempre os olhos pra trás.
Num certo momento, nos segundos de menos enfrentamento, peguei o celular na pochete e liguei pra uma amiga. Ela tinha saído antes do trampo e presumi – pelo que sei que ela acredita – que ela estaria na manifestação. Além da preocupação que tenho para com meus amigos, queria chamá-la pra tomar uma cerveja – para isso também os amigos são ótimos. Porque, lhes digo com toda sinceridade, depois de lágrimas lacrimogênicas com leite de magnésia e sentir vomitar meu coração, não poderia ingerir outra coisa que não cevada. Só uma cerveja curaria o trauma e conservaria a história.
Ela não me atendeu. A preocupação manteve-se estável e segui pedalando à frente da Consolação e olhando sempre - sempre - sempre pra trás. Não nos era permitido retornar – agora já me considerava uma manifestante –, nem pegar as ruas paralelas. Em frente, sempre em frente. Marche! Como a manada que somos. Porém, entre os animais sempre há os rebeldes e entre rebeldes sempre há uma brecha. Uma porção de gente contornou a Rua Sergipe, a de baixo do Cemitério da Consolação. Eu, nessa frequência da vida, faço parte dos parvos. E como boa parva que sou, não acompanhei esse movimento de desgarramento, descia cegamente a rua. Estava do outro lado da avenida. Mas como tudo se passou em segundos, pensei que talvez fosse interessante virar na rua seguinte, pois ao fim da Consolação haveriam tucanos trajados de urubus a nos esperar.
A Rua Dona Antônia de Queirós foi a escolhida. Viramos, eu e mais outras poucas pessoas. Não sabia mais distinguir os manifestantes, dos repórteres, dos pedestres e dos black blocs. Na rua, muitos deles chutavam as caixas de lixo e faziam barricadas com elas. Pedalei por esse quarteirão e desci na Rua Itambé. Próxima à esquina, vi alguns carros de polícia passar na Rua Sergipe, agora a paralela. Parei para pensar por alguns segundos – que se tornaram milésimos de segundos, pois percebi que havia parado exatamente em frente ao apartamento que morei poucos meses atrás. O desfecho dessa história não importa. É outra história. O que seria relevante de ser narrado, e que desencadearia a sucessão de frames da vida, será. Mas, para todos os efeitos e manutenção do enredo, precisarei dizer que não foi um lugar do qual eu tenha saído amigavelmente, daí o súbito desejo de me afastar, inclusive, da calçada do prédio desse apartamento. Não permaneceria ali nem para respirar. Milésimos de segundos se passaram.
No quarteirão de cima havia a polícia, na calçada onde estava havia o rancor. Só poderia fazer um movimento de descida, que foi bastante espontâneo diante das adversidades desses últimos frames de vida. Desci. Não obstante, os infortúnios não bastaram e, espontânea, a vida se mostrou. Ao descer a rua, fugindo da polícia e do desassossego, vejo outras memórias fugirem do outro lado da rua. Vejo Ele. Sem mais nem porquê. – Essa história se situa em São Paulo, se lembra? É importante situar a dimensão dos fatos. Incalculáveis, penso, quando se tratam de assuntos do coração. Minutos atrás eu fugia da polícia, inalava gás lacrimogêneo, chorava forçadamente e cuspia leite de magnésia. E agora… vejo um amor do futuro do pretérito. Vi o amor ao cruzar a rua e, rindo despretensiosamente, não exitei em parar. Parei. Desci da bicicleta. E sorri.
Ele falava ao celular – imaginei ser sua companheira –. Me viu. E parou. E olhamos pra trás. E sorrimos. E caminhamos. E fugimos juntos de uma polícia que cumpre ordens e persegue cidadãos gauches – até que se prove o contrário –. Entre os sentimentos mais brutais de que tenho conhecimento, me vi: a violência e o amor.

[Haverá continuação]