4 de novembro de 2015

A melhor hora da Praia


Bonito,

Bonito foi nos conhecermos. Eu escrevendo, contemplando o mar. Você, do bar, contemplando a mim e ao mar. “Tienes una sonrisa muy hermosa”. Sorri. “Salgo a las doce, ¿te gustaría tomar una cerveza?”. “Sí”. 
Entre conversas sobre la música y la escritura, cervezas y sonrisas “me dijo que dormía temprano pues no llevaba una vida de turista”. Pensei nisso durante meu último dia na ilha, um dia de turista. Como ya lo sabe, viajé sola. Pero en muchos momentos de mis trilhas no permanecí sola. Este fue el único día que logré hacer eso. A melhor hora da praia.

Desperté temprano, antes del desayuno y me puse a escribir. El hostel Sitio Green, en el que estuve el último día, es fantástico. Una finca en el medio de la floresta. 
Un sitio tranquilo y a mí me parece que te gustaría trabajar allí. Tendrías incluso tiempo para entrenar el sax. Después de muchos cigarrillos e inspiraciones, desayuné tranquilamente aprovechando el lugar y los sabores de las diversas mermeladas. 

Después salí, destino Praia Preta.
Já tinha percorrido por ali no dia anterior, mas quis explorar melhor o lugar, desta vez sozinha. Tirando fotos e conclusiones. Durante o trajeto, vi alguns papeis e embalagens deixadas pelo chão. Comecei a recolhê-los e quando me dei conta já estava com a sacola plástica, também deixada no chão, llena de basura.
Lazareto - Ilha Grande/RJ
Esse passeio teve um ar de magia e traquinagem. Segui pela praia, mas vi entre as pedras umas trilhas mais escondidas. Me meti a explorá-las e encontrei vários resquícios das ruínas do Lazareto. Muralhas e escaleras de pedras cobertas pela mata. Fiquei maravilhada. Deixei meu corpo ser invadido pela atmosfera de aventura. Ao tentar me equilibrar numa pedra para tirar uma foto, escorreguei e cai. Ralei meu braço e me sujei de terra. Ri alto. 
É interessante lidar com o medo e o desejo. E me recordei de um poema que seu homônimo Alejandro Zambra, o autor chileno, escreveu no livro Formas de voltar para casa, àquele que você me via ler:






É melhor não sair em nenhum livro
As frases que não nos queiram abrigar
Uma vida sem música e sem letra
E um céu sem essas nuvens que agora
Você não sabe se estão indo ou vindo
Essas nuvens quando mudam tantas vezes
De forma que ainda parecemos estar
Morando no lugar que abandonamos
Quando ainda não sabíamos os nomes das árvores
Quando não sabíamos os nomes dos pássaros
Quando o medo era o medo e não existia
O amor pelo medo
Nem o medo pelo medo
E a dor era um livro interminável
Que um dia folheamos só para ver
Se no final apareciam nossos nomes

Todo el viaje fue muy simbólico, como te lo dije. Y en pocos días me ayudaste a aclarar muchos pensamientos y a ver otras formas de vivir. "¿Qué hiciste hoy?". Me encantó cuando te enseñé la piel de culebra que encontré en la trilha y tú dijiste que se asemejaba al mapa de la América y también a mí, cambiando de piel.
Conversei com muitas pessoas durante a viagem e quando lhes perguntava alguma ideia de passeio para o dia, elas me indicavam o lugar onde tinham a melhor vista da ilha. Foram diversas melhores vistas. Hoje, no meu último dia aqui, encontrei o meu lugar. Quase ao fim da Praia Preta, encontrei uma trilha que me levou a algumas pedras gordas e altas, com um musgo verde vivo. Sentei numa delas e contemplei a vista por um longo tempo. Vi muitas conchas grudadas nas pedras. Y después de casi dos años, encontré el momento ideal para fumar mi proprio porro. Hecho por mí misma. Temblaba. Fue una mescla de sensaciones, libertad y  seguridad y miedo… Uma borboleta amarela cruza pela minha paisagem... Tudo significa.


Praia Preta - Ilha Grande/RJ
Sai dessas pedras pelo mar. Encontrei outro lugar ideal embaixo de umas árvores baixas, como arbustos, sobre um rochedo das ruínas do Lazareto. Deixei encostados nela a sacola de lixo, a mochila, a roupa e os chinelos. Ao redor, havia algumas pessoas na praia e umas poucas ruínas. Um velho cais implodido, provavelmente. Joguei meu corpo e desejos no mar.


Entrei bem devagar para contemplar cada passo, percebidos claramente diante da limpidez da água. Isso foi o que mais me deixou abestalhada na ilha. A limpidez das águas dos mares que a circundam. Sim, mares. Pois cada praia é particular. Mudam os tons de cores e sabores de sal. Dá para ver os peixes, as conchas e muito do bioma marinho, se contemplá-los com cuidado e abrir os olhos para outros universos. Muitas pessoas divagam em pensar se há seres extraterrestres. – Não sei, provavelmente. – Mas não se dão conta de todo o universo que há no nosso próprio habitat. Me diverti observando as conchinhas.
Mergulhei e pude ver também o reflexo de minhas mãos na água. Como se olhasse para um espelho, de baixo para cima. Estava plena. Sensação incrível. Há uns 200 metros havia pedra no meio das águas do mar – calculo. Já havia observado algumas pessoas nadarem até lá e quando não tinha mais ninguém nadei até ela. Lapidada pelo mar na parte superior, mas bastante áspera nas laterais. Essa inclusive foi uma das queixas que ouvi dos companheiros de trilhas “as pedras são bem ásperas por aqui, tenha cuidado”. Nesse momento, agradeci. Algumas asperezas são necessárias. As da natureza, somente. Quando cheguei na pedra, excitada de adrenalina e de marihuana, gritei naturalmente: Terra à vista! Gargalhei de mim. É bom rir de si, por isso vivo sorrindo. Das situações e acasos que vivo. Para me livrar de certas asperezas não naturais.
Deitei na pedra e deixei as ondas me lapidarem também. “Llegué”. Gozei. Já fazia uns dias que eu não alongava as costas – um dos maus de se dormir em beliches. Já deitada na pedra, levantei as pernas para cima, forcei a lombar e levei as pernas e os pés para trás da cabeça. Um tesão sentir meu corpo todo se esticando. Trouxe as pernas de volta, mantive-as para cima, num ângulo mais ou menos de 90 graus, e estiquei o máximo que consegui. Depois desci as pernas, deitei novamente e levei meu tronco até o joelho, abraçando os pés. Deitei novamente, as ondas me fizeram escorregar um pouco, e senti que era hora de voltar à areia.
Nesse meio tempo, com infinitas coisas para brisar, você me veio à cabeça, Alejandro U. “Soy argentino pero el apellido es vasco”.
Pensei no trajeto que você disse fazer todos os dias a nado. Energizante! Não pude deixar de pensar também em nossa breve despedida. Estava difícil deixar a Ilha e arranjei desculpas para permanecer mais tempo nela. A primeira foi o ônibus, que deixei, propositalmente, para comprar de última hora e quando vi – quando vimos –, sexta à noite, não tinha mais vaga num horário depois das 18h. Fiquei mais um dia e foi providencial. Esse dia foi hoje. O meu dia. A melhor hora da praia.
A outra desculpa seria passar o dia contigo, porque “los martes son meus dias de folga”. Nesse tempo em que fiquei na pedra, algumas coisas ficaram mais claras. Pensar em escrevê-las deixou tudo mais límpido, como o mar. Sou uma mulher das palavras escritas. Quando propus a você que passássemos esse dia juntos, queria experienciar o dia com você. Como você vive seus dias na ilha. Como acabei também vivenciando a rotina de outras pessoas da ilha. “No quiero envolverme con nadie”, me disse. “Yo tampoco”, respondi. No entanto, já estávamos envolvidos. No quisiste. Talvez tenha sentido medo, miedo. Ya te había dicho que tampoco quería envolverme con alguien. Não tenho como. Você também não. Estás para la música como estoy para la escritura. Estamos para la vida. Solo me gustaría que hubiera tenido confianza en mí. ¿Comprendes? Pero no dice que no me enamoraría de ti. Me suena diferente. Pienso que la vida es para ser vivida con pasión. Lo siento, pero me enamoro de las personas que piensan. Además de eso, de tu miedo solo concluyo que yo soy una persona apaixonante. Tu también lo es. Fomos. Fuimos.
Queria nadar da praia de Abraão à Julia, de Julia à Crena – e poder ver à luz do dia a praia onde transamos à luz do luar –, e de Crena à Abraãozinho. Sentir o tesão de nadar com você e te ouvir algumas horas mais. Depois, voltaríamos pela trilha, molhados e suados. Você cozinharia para nós seu prato preferido e enquanto estudava música, eu começaria a ler Siddhartha, de Hermann Hesse, e escreveria poemas. Por la tarde me iría a Sitio Green, arreglar mis cosas para partir. Sin embargo, nos quedaron abrazos, besos y cansancio. “Boa vida!”. “¡Buena vida!”.  
De volta à areia, traguei deliciosamente um cigarro. Senti vergonha, depois de tudo que acabara de fazer. Nadar, alongar... Ainda não tenho vontade de parar. Talvez mude para o palheiro. Talvez. Uma hora isso acontecerá naturalmente, como a vida deve ser. Ou não? Mas me pego a pensar que fumando só estrago – conscientemente – a mim. E a minha frente vejo a sacola cheia dos lixos que encontrei pelo caminho. As recomendações de saúde giram em torno do discurso da hipocrisia. Por isso recolho lixos e fumo cigarros.
Fechei o cuaderno de ideas – o mesmo que você escreveu o nome de Aníbal Augusto Sardinha, Javier Malosetti & Negro Rada – e me joguei no mar para um mergulho de despedida. Energizante. E segui meu rumo, hoje com um destino mais certo e cronometrado.
Me troquei na trilha, tirei ainda uma porção de fotos e fui comprar regalos para mi família. A loja Artesanato é incrível. Uma casa de fachada amarela com janelas azuis, bem próxima ao cais por onde sai a barca. Além de esculturas, cangas e lenços muito bonitos, ela tem logo na entrada uma prateleira com instrumentos musicais. Segundo a vendedora, a maioria dos artigos da loja são importados da Indonésia. Os instrumentos também são. Comprei dois, não resisti. Mais uma das tantas lembranças da ilha. Uma flauta de bambu e um tambor de mola grande, o mais manêro, pues ele imita o som do trovão, truenos, se você o coloca mais longe do ouvido, e das ondas do mar, olas, se o coloca encostado. Ele é feito de um papel bem grosso e tem formato cilíndrico. Numa ponta é fechado com plástico e do meio desse plástico sai uma mola larga, de uns 30 cm. Curiosamente, gostei do primeiro que peguei pelo som e por ter nas pinturas tons de verde, minha cor preferida. Depois, observando-o de novo, me dei conta de que tem um lagarto desenhado de estampa. Tenho simpatizado com as metáforas dos répteis, cobras e lagartos.
Depois que almocei, segui em direção ao Sítio, o hostel que passei esse último dia. Lugar fantástico. Posso dar mais detalhes numa outra correspondência, porque algo mais fantástico aconteceu em seguida. Caminhava na rua Profa. Alice Kuri da Silva, a rua da igreja, e ouvi um barulho de serra na primeira rua à direita, numa das paralelas da Rua da Praia. O som vinha de uma marcenaria. A marcenaria do Maurício. Ele é badjeco – nome que se dá aos nativos de Ilha Grande ou que moram nela há mais de 9 anos. Parei em frente à loja e o observei trabalhar. Muito simpático, disse para eu olhar à vontade. Agradeci sorrindo. Reparei que bem na frente da loja, à esquerda, havia uma mesa cheia de livros. Ao lado dela, uma caixa também cheia. Na conversa, Mauricio me disse que num sonho ouviu alguém dizer a ele que tirasse os livros da estante e os pusesse à mostra, na cara das pessoas. E assim ele iniciou seu projeto. Ele propõe que cada pessoa pegue o livro e passe-o para frente, para outro leitor, e deixe um de seus livros na mesa. Essa é a segunda vez que expunha os livros, a primeira vez foi em frente à igreja.


Me aproximei da mesa e de cara vi O fio das missangas, de Mia Couto, autor moçambicano. Tive uma vaga lembrança de dois amigos comentarem sobre Couto na mesa do bar, em São Paulo. Fiquei com ele e fiz um acordo com Maurício: “Vou levar esse livro, mas me passe seu endereço – su dirección – que te enviarei o meu” – pensando no livro que vou escrever sobre essa viagem, como comentei com você. Endereços trocados, nos despedimos. “Quem sabe não te trago o livro e te entrego em mãos Maurício...”. Ele sorriu e disse que aguardará.
Ao olhar o livro, vi que a página estava marcada pela orelha no conto “O rio das Quatro Luzes” e logo na primeira linha, uma adaptação de um provérbio moçambicano dizia “O coração é como uma árvore – onde quiser volta a nascer” – El corazón es como un árbol – donde quieras vuelve a nacer.
Não sabemos por onde os acasos nos levarão. Estou descamando e uma nova pele se cria. Não te esperarei. Pero sería lindo (re)conocerte en otro lugar y vivir los días contigo, escribiendo y escuchando las canciones de uno que un día fue el único saxofonista de la isla. Viviendo nuestra madurez.

¡Buena vida!

Com amor,


Bonita.

10 de outubro de 2015

Romance experimental

Foi uma noite breve, mas intensa.
Entre peixes, pássaros e planos, desfiz impressões emplastadas de mim.
Te vi, estranho.
E contemplei teus feitos, anseios e beijos.
Te li e atribui ao seu sentido coincidências.
Ruborizei.
Em nós não caberiam confidências, mas trocas de experimentos, livros, ideologias e fluídos.

Contornos de um romance experimental.

São Paulo, 06 de outubro de 2015.

Teste do coração ou borboletas amarelas

[Sugestão de trilha sonora pra acompanhar a leitura: Tiganá Santana - Tempo & Magma (Ajabu!)]

− Altura?
− 1,70.
− Peso?
− 65, eu acho.
− Você se alimentou direito?
− Sim.
− Pratica exercícios?
− Sim, ando de bicicleta pelo menos quatro vezes na semana.
− Você fuma?
− Sim.
− Pode-se deitar de lado. Vou colar esses eletrodos no seu peito e começar o exame. Você já fez ultrassom?
− Sim.
− Esse exame é como um ultrassom, passo esse gel e tiramos um ultrassom do seu coração.
− Tudo bem.
− Vamos começar.
Entre o porquê deu estar fazendo esse exame, o clima e outras corriqueiridades, conversamos.
− Doutor, existe coração pequeno?
− Existe, é raro, mas existe. Fazendo uma analogia um pouco superficial, é como se uma pessoa de dois metros de altura calçasse 35. Os pés são proporcionais ao tamanho do corpo como o coração. Até pode existir um coração menor, ou pequeno, mas o coração é do tamanho necessário para comportar sua função, seus batimentos...
− Meu pai dizia que tinha o coração pequeno, mas nunca perguntei [não deu tempo de perguntar] se ele falava brincando ou se de fato foi diagnosticado com o coração pequeno...
− Bom, esse aparelho que estamos usando tem 1 ano. Ele é muito eficiente e podemos medir com certeza o tamanho do coração. Antigamente, os recursos eram escassos, talvez os diagnósticos não fossem tão precisos... Já estamos quase acabando, só vou ouvir seus batimentos.
Ouvimos meus batimentos e, nesse instante, um filme da vida passou pela minha cabeça. Lágrimas tímidas caíram no travesseiro. Ouvi meu coração. Foi a primeira vez que o ouvi e o vi bater. Eu me vi por dentro, vi o mais humano de mim. O órgão da vida e o que acredito guardar os sentires. Penso que é porque ele de fato sente. Processamos os sentimentos no cérebro, claro, mas o coração sente. Ele constata o sentimento. Quando nervosos ou apaixonados, ele pulsa com toda sua puissance, parecendo querer rasgar o peito. 
Nem por um ou outro, vi meu coração pra fora, na minha mão. Mole e ensanguentado, ele pululava. E eu o apertava mais e mais, porque queria sentir a dor na sua materialidade. Queria sentir uma dor física num lugar onde ela tem sido sentida tão abstratamente. A ausência física do meu pai me causou um imenso vazio... Me deixou oca. 
Um dos ensinamentos que traz uma morte é ver que há muita vida. Ou vidas. Tudo vive, talvez não no conceito mais biológico do termo, mas tudo carrega uma energia. Se num dia extremamente quente você se depara com uma pedra bem grande numa sombra e se deita sobre ela, você, se sábio, consegue sentir um choque de temperatura, de energia. Ela vai te refrescar e você pode aproveitar dessa troca e sentir na pele sua vida.
Vazia, oca e um pouco louca, abri meus olhos (e coração) pras vidas ao redor, como uma busca de preencher um espaço impreenchível. Às vezes é preciso resignificar a vida. E entre perceber e desfrutar de céus azuis da capital (por vezes raros, tornando-se mais dignos de serem percebidos) e da delícia que é o vento batendo no meu rosto quando ando de bicicleta, percebi por muitos dias a companhia de uma borboleta amarela. Se meu pai era cheio de vida, “era vida que se via em você”, e amante incondicional da natureza; se a energia se transforma; se levo comigo a necessidade de certas materialidades; e se me encontro por vezes perdida em sentimentos e ausências, assumi a borboleta como companhia e passei a chamá-la de Pai, o borboleto. 
Vi nisso um sentido. As borboletas vivem brevemente seu um mês com intensidade, perpassando por todos seus ciclos. Sua vida é breve, mas bela. A vida de meu pai também foi breve, mas intensa. E Pai, o borboleto, tem me mostrado que tudo é finito, mas que o fim não significa perda, pois ainda que nos afastemos do passado, ele nos constitui e nos ensina e ampara no adiante...
Pai, o borboleto, passou pela minha janela segunda-feira para desejar boa sorte. Estava, dessa vez, alaranjado. Talvez quisesse me abrir pras mudanças que estavam por vir. Novos ciclos, novas vidas...

São Paulo, 04 de outubro de 2015.

Sentidos

Certa vez ouvi ao pé do ouvido, envolvida em braços e em lábios dançantes, num salão de tacos mogno deslizantes, e ao som de uma sanfona sentida – https://www.youtube.com/watch?v=hYe7nmtVC_g – que íntimo era um convite para se conhecer uma coleção de discos.
“Um equívoco” – pensei.
Se não houver – em mim – a satisfação e deleite de um beijo, tampouco chegaremos à coleção de discos e, muito menos, alhures... à cama.
Não há lugar no qual eu me entregue mais que num beijo. Nele recupero todos os sentidos e, ao mesmo tempo – se bom – os perco.


São Paulo, início da primavera de 2015.

Violências urbanas

Primeiramente, ontem. Violências urbanas...
O eu não consegue acessar o sou, soul. Mas, certamente, o outro verá o sou, tirará suas conclusões e o invadirá. As coisas “são” assim.
Terça-feira, o dia universal do descaso de Deus com o mundo. Por que criar uma terça, um terço, um culto e...? – quase me esqueci que essas criações são humanas. O criador é o homem.
Não era pra existir lados, mas sendo a antítese intrínseca ao cartesianismo, escolho: estou do lado da mulher, até que se prove o contrário.

São Paulo, terças de agosto de 2015.

Causos de infância

De volta ao lado esquerdo... Quando tinha onze anos – antigamente, nos anos 2000 –, Sandra, a professora de português, me deu um presente: uma borracha com muitos lados. Ela não era pra apagar nenhum borrão que eu tivesse feito a lápis. Ela era especial! Me ajudaria a “escrever do jeito certo”, porque até então eu colocava o lápis – ou qualquer outro objeto que tinha como fim manchar de tinta o papel – entre os dedos indicador e médio, sempre amparados pelo polegar, vulgo dedão.
A borracha corretora era colocada próxima a ponta do lápis e meus dedos ficavam “certinhos”, o dedão e o indicador seguravam o instrumento e o médio apoiava a pontinha. E foi aí que eu aprendi a escrever!
Esse episódio nunca saiu da minha cabeça – e olha que se passaram 15 anos! – “escrever do jeito certo”... Hoje me pus a pensar se a professora queria me ajudar por saber que essa forma de correção motora, comprovada cientificamente, era um jeito totalmente mais cômodo de lidar com o lápis ou se era só mais uma dentre tantas medidas autoritárias e corretoras que somos impostos sutilmente quando no ambiente escolar e no âmbito da arte de educar.
Não proponho conclusão, mas me lembro de que ela era meio ditadora na sala de aula, esse era seu perfil. Entretanto, escrevo.

São Paulo, 24 de maio de 2015.

Tentei não pensar em nada que me afligisse. Não por mim, mas pela paisagem que carecia de toda admiração. Tantos tons de verde-e-terra. Horas encantadoras.
Gostaria de me sentir mais livre, mas já agradecia pela experiência que esse coletivo me proporcionava. Deixei de pensar no futuro do pretérito intrínseco às ânsias humanas. Horas encantadoras e minutos inebriantes. A caverna, o contato mais profundo – ainda não íntimo – que tive com a história da Terra.
Me proporcionei luxos de intimidade. Ainda que no século XXI o moralismo e a procura por uma consciência saudável oprimam certos vícios e prazeres mundanos, sinto que os fumantes – como são relegados ao isolamento – conseguem licenças poéticas para driblar o tempo.
A disposição e a confiança também colaboraram. Darcy e Jânio, meus guias, sentiram meus movimentos de me manter e querer estar por mais alguns segundos contemplando a caverna. Minutos e segundos encantadores.
Sete minutos é o tempo que ganho fumando, mas que podem ser equivocadamente confundidos com tempo de vida perdido. Não é querer ser inconsequente, mas o que é vida senão o momento?
A caverna do Morro Preto, as árvores que maquiam os caminhos para se chegar até ela, o vento, meu pai e eu.
Na volta do passeio, só pensava em me aventurar no ócio e no relaxamento do corpo. Imersão na piscina natural.

















PETAR, 25 de abril de 2015.
tenho teu tudo
beijos, corpo, alma
trocas intensas
íntimas
– inclusive, sei que não chora com frequência, 
que Amanda, tua terapeuta, está grávida
e que acha difícil alguém suportar uma convivência em tua companhia –
tenho teu todo
mas não tenho seu tempo

Feliz aniversário.

São Paulo, 27 de abril de 2015.

Dia da Mulher

Acordei preguiçosamente num domingo chuvoso. Como de hábito e vício, peguei o celular para ver as horas, checar as mensagens... E uma delas dizia: Feliz Dia da Mulher!
Não me lembrava dessa data, uma a mais, como tantos outros dias de “tudo que se tem data comemorativa”. As datas comemorativas me deixam assim indecisa e pensativa... E não há como não pensar sobre o dia da mulher se sua página inicial, o Google, já te relembra sobre ele com uma linda ilustração de mulheres, em suas diversidades de traços, culturas e atividades: mulher cientista, mulher guitarrista, mulher contadora de histórias, mulher astronauta... Não há nenhuma mulher dando à luz, isso me deixou feliz, porque para ser mulher você não precisa ser mãe...
Conectada ao mundo das possibilidades, a primeira reportagem que vi publicada no meu Facebook foi “Uma homenagem do machismo ao Dia Internacional da Mulher”, publicada na Carta Capital.
Senti uma empatia muito grande com ela, pois descreve em alguns parágrafos o que sinto e penso sobre “ser mulher” numa sociedade machista. 
Nesse ínterim, o Facebook me pergunta: No que você está pensando? 
Penso tantas coisas... E diante do vazio característico da sociedade atual – a que vivo –, displicente em querer saber dessas tantas coisas que penso, me sensibilizo com a possibilidade de dizer ao Face e ao mundo – o meu mundo – que curti e compartilhei a reportagem.
Porém, um momento de lucidez cibernética me toma e me impede de efetivar essa publicação. – Por quê? – Porque seria uma publicação impulsiva e inexpressiva diante de tudo o que de fato o Dia da Mulher passou, em poucos segundos, a representar para mim.
Pensar e tecer um olhar reflexivo e crítico sobre as coisas não é fácil. Escrever, então, às vezes é um parto. Mas – não sei o porquê dessa adversativa – me reconheço nas “Palavras não falam”, que Mariana Aydar canta para mim em algumas manhãs:
“Eu me entendo escrevendo
E vejo tudo sem vaidade
Só tem eu e esse branco
Ele me mostra o que eu não sei”
E, para mim, escrever é isso: um consolo, um estímulo, uma lucidez... E para escrever – bem escrever – é preciso entender seu lugar enquanto enunciador e se voltar aos outros infinitos lugares de enunciação, proporcionados pela busca histórica dos fatos, que não são unívocos, mas expandem a fluidez dos pensamentos. O segredo da reflexão está em observar as trajetórias possíveis...
Demagogias à parte, voltamos à motivação principal desse texto-pensamento. O primeiro 8 de março comemorado como Dia da Mulher no mundo foi em 1917, em meio à Revolução Russa, no qual mulheres russas se manifestaram contra a entrada da Rússia na Primeira Guerra Mundial e por melhores condições de vida e trabalho. Nessa ocasião, a Rússia vivenciava o início da revolução que depunha um império milenário, sua população passava por grandes disparidades econômicas, étnicas, religiosas e buscava a independência desse governo autocrático. O “fim” dessa revolução culminou na Revolução de Outubro e na constituição do primeiro regime socialista da História. Acredito que a presença de mulheres numa luta revolucionária deve ser exaltada e pontuada, pois era uma situação em que a igualdade de direitos era tratada de uma forma mais paritária.
Após esse episódio, O Dia da Mulher veio à tona somente na década de 1960, recuperado pela primeira “onda” do movimento feminista. Durante muito tempo, os movimentos feministas eram constituídos principalmente de mulheres brancas de classe média originadas da Europa Ocidental e da América do Norte que lutavam principalmente pelos direitos de igualdade de poder (direitos de contrato, direitos de propriedade, direitos ao voto). Na década de 1960, esse pensamento passou a ser discutido e vivido em outros lugares menos setentrionais e mulheres das “antigas colônias” puderam vivenciar a luta pela desigualdade relacionada ao racismo, à homofobia, à colonização...
Em 1977, o Dia Internacional da Mulher foi adotado pelas Nações Unidas para relembrar as conquistas sociais, políticas e econômicas das mulheres. No entanto, como um dia festivo qualquer, ele perdeu seu caráter histórico de se tornou uma mera data comercial – estratégia articulada sabiamente pelo capitalismo.
Sendo assim, volto a pensar: Por que comemorar o Dia Internacional da Mulher? E por que comemorá-lo no Brasil?
Em 1928, a professora Celina Guimarães Viana, nascida em Mossoró, foi a primeira mulher a ter o direito de voto no Brasil, fato que pode ser considerado como o início da luta dos movimentos feministas no país. (Nesse mesmo ano, o voto feminino se regularizou na Inglaterra.) Celina deu entrada numa petição requerendo sua inclusão no rol de eleitores do município, por meio do artigo 17 da lei eleitoral do Rio Grande do Norte, de 1926, que dizia “No Rio Grande do Norte, poderão votar e ser votados, sem distinção de sexos, todos os cidadãos que reunirem as condições exigidas por lei”. Na época, esse feito impulsionou um grande movimento nacional levando mulheres de diversas cidades do Rio Grande do Norte, e de mais outros nove estados da Federação, a exigirem seu título eleitoral e direito ao voto.
Outra conquista que podemos pensar como uma contribuição à liberdade da mulher foi a legalização do divórcio. O Brasil constituiu-se como um país católico e foram necessários quase dois séculos para que houvesse uma emancipação do país como um Estado Democrático sem interferência direta da Igreja na vida privada. O divórcio foi instituído oficialmente com a emenda constitucional número 9, de 28 de junho de 1977, regulamentada pela lei 6515 de 26 de dezembro do mesmo ano. A lei concedeu a possibilidade de um novo casamento, apenas por uma vez, e o 'desquite' passou a ser chamado de 'separação'. Somente com a Constituição de 1988 foi permitido o divórcio e o casamento quantas vezes quisesse. 
Podemos pensar no divórcio como um alívio para tantas mulheres que casaram por obrigação ou que por uma infinidade de motivos mantiveram-se presas numa construção sacralizada como o casamento. Ainda sim, muitas mulheres se prendiam a essa instituição mesmo sofrendo violências, não sabendo ou podendo recorrer legalmente às opressões. Daí a importância também de exaltarmos a relevância da mulher Maria da Penha Maia Fernandes que após ser vítima de violência doméstica por 23 anos, lutou pelo surgimento de um dispositivo legal que aumentasse o rigor das punições aos homens que agridem física ou psicologicamente a uma mulher ou à esposa. Infelizmente, a denúncia aos casos de violência familiar e doméstica tem um prazo de validade de seis meses e é, muitas vezes, inferior ao tempo de maturação que pode levar um agredido a desligar-se de um agressor.
Depois de refletir e tentar organizar minimamente minhas ideias sobre a data comemorativa das mulheres, sinto uma dor e lastimo relegarmos essa data à mera troca de votos de felicidades vãos e à troca de presentes imbuída de consumismo. Como os aniversários, penso que essa data deva ser comemorada, com lembranças e um retorno à História. Recordando que se hoje temos o direito ao voto, ao divórcio e à igualdade (relativa) de sermos, foi graças à força, à luta e à insistência de muitas mulheres outras que viveram observando e sentindo uma vida de privilégios essencialmente dos homens. Direitos só o são quando compartilhados por um todo, e se há um em um meio que não possa compartilhar desses direitos, torna-se para os outros um privilégio.
Mulheres vivem. Mulheres, vivam! Resignificando e construindo novas maneiras de sermos, ou melhor, de podermos ser.
Enunciadora: uma mulher em construção e desconstrução de si e de parâmetros socialmente estabelecidos como certos. Careca por opção, mas daí a falar de construções de parâmetros de beleza, deixo para uma outra tarde inspirativa...


Mirassol, 08 de março de 2015.