30 de outubro de 2013

Olhares

Eis que, comparando três traduções de uma tira da Mafalda, eu paro para pensar nos sentidos possíveis de “sair e ser livre” e “sair e ficar livre”, que diferença essa escolha faria numa tradução? Como no texto fonte em espanhol (digamos, texto original numa perspectiva mais logocêntrica) está “salir y ser livre”, vou classificar “ser livre”, na tradução, como uma tradução literal. Já, “ficar livre” me deixou pensativa, seriam sinônimos interlinguísticos? Pois bem, o são. Segundo as modalidades de tradução (AUBERT, 1998), portanto “ficar livre” também será classificado como uma tradução literal. [Parabenizo aqueles que chegaram até aqui e pretendem prosseguir]. Mas não era isso que eu queria comentar. Me interessei mais em divagar meus pensamentos. Pensar sobre o “ser” e o “ficar”. Tenho pensado bastante sobre isso, sobre “ser”. O verbete do dicionário me diz “2. Indivíduo humano, pessoa. 3. O mais íntimo e essencial do humano”. O que ele sabe sobre isso? O mais íntimo e essencial do humano. E eu o retruco, o que é essencial do humano? Nada. O “ser”, pra mim, tem um quê de peremptório. Por isso estimo mais o “ficar”. O ficar é uma condição dissolúvel, o ficar é “tornar-se, fazer-se”, ou “converter-se em”, ou “vir a ser”, ou “permanecer em determinada situação, em determinado estado de espírito”. Eu não sou, eu fico. Eu não sou, eu estou. Não se é o mesmo sempre. Não se é o mesmo nunca. Olhares detidos e desatentos podem se confundir. Há tempo.

22 de abril de 2013

Ancianidades



- Vem, vem, isso, devagarzinho, isso, mais um pouco. Está bom, pode sentar.
Ele ajuda Ela a se sentar e sai. Liga a TV e põe um filme.  
- A gente se divertia pra caralho fazendo isso aqui. Você vai gostar.
- O dia está bonito hoje.
- Está.
- Quando eu ia pra BH, dar o curso no meio da semana à noite...
- Olhe, querida.
- Foi quando mesmo?
- Em 2023, algo assim, lembra?
- Acho que sim.
- Foi sim, agora olhe.
- Era tão gratificante e cansativo...
- Só quero que você olhe, princesa.
- Quantas discussões interessantes...
- Pois é.
- O tempo passa muito rápido mesmo...
- Se passa...
- Que barulho alto! Por que você ligou a TV?
- Coloquei um filme.
- Ele, parece você no filme.
- Isso! Sim!
- Você está pelado!
- E duro! Bons tempos.
Ela ri.
- Tem alguém com você.
- Tem.
- Uma mulher bonita.
- A mulher mais linda do mundo.
- E está pelada também.
- Muito gostosa.
Ela começa a chorar desconsolada.
- O que foi querida? Não está gostando de rever os...
Ela o interrompe.
- Nunca achei que fosse me trair de forma tão cruel e baixa...
- Não, princesa.
- Esse vídeo, essa mulher... Por que fez isso?
- Meu amor, olhe com atenção!
- Meu coração dói! Há quantos anos me engana? Uns 40 anos?
- Ela, você é a mulher do filme! (Ele diz em voz alta e com um tom já impaciente)
- Oi?
Ele se levanta enfurecido.
- É você a mulher do filme! Minha única mulher, o amor da minha vida!
Ela para de chorar de repente. Está imóvel e atônita. Ele só ouve a respiração dela.
- Ela? Que idiota, achei que seria uma boa ideia rever nossos vídeos! Elaaaa? Meu amor!
Ele a chacoalha um pouco.
- Só queria te animar! Te ajudar a se lembrar de nós! Como nossas transas eram foda! Como fomos felizes!
Ele fica aflito. Ele a chacoalha de novo e dá uns tapinhas em suas costas.
- Elaaa?
Ele tenta disfarçar o choro, não sabendo ao certo de quem, dele mesmo.
Ela volta! Teve outra crise.
- Já são 16h, querido? É a hora do meu leite com chocolate.
Ele se recompõe. Enxuga as lágrimas com alivio e melancolia. E se levanta.
- Sim, meu amor, já vou trazer.
- Que barulho alto! Por que você ligou a TV?
- Por nada. Agora vem, isso, devagar, mais um pouco. Está bom? Pode encostar. Tome, seu leite. Beba devagar.
Ele cuida dela com carinho e impaciência. Tem medo que ela se tranque dentro de si e não volte mais.